ANMP
- Introdução
Em 06 de novembro de 2020, a Subsecretaria da Perícia Médica Federal e o Instituto Nacional do Seguro Social editaram o Ofício Conjunto SEI n. 40/2020/ME, que “Disciplina a realização da Perícia Médica com Uso da Telemedicina (PMUT), em cumprimento a decisão do Tribunal de Contas da União, enquanto perdurarem os efeitos da crise ocasionada pela pandemia do novo Coronavírus.”
Nesse ato, ficou a Administração Pública aprovou um roteiro de procedimentos para a realização da chamada PMUT, discriminado na forma do anexo. Nesse roteiro, em breve síntese, está estabelecida a seguinte ordem de atividades:
- A empresa interessada acessará um determinado site do INSS e anexará documentos do segurado (identidade e documentação médica do caso) e contatos;
- A empresa receberá um link do aplicativo Microsoft TEAMS ® com data e horário para realização da PMUT;
- A PMUT será realizada por Peritos Médicos Federais que estiverem submetidos ao regime de trabalho remoto, nos termos da IN 109/2020/ME de 29 de outubro de 2020;
- As perícias médicas agendadas constarão da aba “Meus Agendamentos” do sistema PMFTarefas do Perito Médico Federal que realizará o atendimento;
- A empresa deverá acessar o link no dia e horário marcados, momento em que o Perito Médico Federal deverá autorizar a empresa a ingressar no “consultório virtual” e impedir a entrada de terceiros, caso isso ocorra;
- O representante da empresa se identificará, juntamente com o segurado, e depois deixará o recinto, para que o segurado fique sozinho com o Perito Médico Federal;
- O Perito Médico Federal deverá, através do aplicativo Microsoft TEAMS ®, analisar toda a documentação médica apensada ao processo, colher o histórico médico e realizar exame físico virtual, além de anotar suas observações no SABI como se o exame físico fosse direto (presencial). Ao fim, deverá concluir a sessão no TEAMS ® e encerrar a tarefa no PMF Tarefas;
- É permitido ao Perito Médico Federal adotar as conclusões disponíveis no SABI (desde ausência de incapacidade até limite indefinido) ou escolher a opção “Não há elementos de convicção necessários para emissão de parecer conclusivo”, sendo que, nesse caso, ele terá que preencher um SIMA remoto, imprimir, escanear e enviar para um determinado e-mail. Ou seja, esse procedimento cria dificuldades operacionais para o Perito Médico Federal optar por essa última alternativa;
- Caso o Perito Médico Federal esteja impedido de comparecer para a realização da PMUT, a Administração atribui a ele a responsabilidade gerencial, inclusive a de achar outro servidor disponível e de promover ações para garantir o respectivo reagendamento do segurado;
- Por fim, o roteiro faz considerações sobre o fluxo de agendamento de PMUT.
- Da flagrante ilegalidade da PMUT
Em 18 de junho de 2019, foi promulgada a Lei n. 13.846, que inseriu o § 12 na redação original do art. 30 Lei n. 11.907/09, que versa sobre a Carreira de Perito Médico Federal. De acordo com a redação do referido dispositivo, “nas perícias médicas onde for exigido o exame médico-pericial presencial do requerente, ficará vedada a substituição do exame presencial por exame remoto ou à distância na forma de telemedicina ou tecnologias similares”.
Portanto, de acordo com o expresso comando da lei, é terminantemente proibida a realização de perícia médica pela Perícia Médica Federal por meio de telemedicina ou tecnologias similares.
Vale destacar que a referida redação do art. 30, § 12, da Lei n. 11.907/09 permanece vigente na presente data e não sofreu alteração por qualquer norma posterior.
A Lei n. 8.112/90 é clara ao definir o dever que o servidor público federal possui de cumprir a lei vigente e ao determinar que ele está igualmente desobrigado de cumprir ordens manifestamente ilegais, como no caso vertente:
Art. 116. São deveres do servidor:
I – exercer com zelo e dedicação as atribuições do cargo;
II – ser leal às instituições a que servir;
III – observar as normas legais e regulamentares;
IV – cumprir as ordens superiores, exceto quando manifestamente ilegais;
O servidor que descumprir seus deveres ou violar as proibições pode ser punido administrativamente, por meio de Processo Administrativo Disciplinar (PAD). Cabe pontuar que, ainda que se admitisse a necessidade de se afastar a previsão do art. 30, § 12, da Lei n. 11.907/09, não cabe ao TCU ou a qualquer outro órgão da Administração Pública adotar essa providência, sob pena de violação ao princípio da reserva de jurisdição e de usurpação de competência do Poder Judiciário no controle da legalidade e da constitucionalidade das normas.
Importante salientar que, apesar de anterior à Lei n. 13.989/20, que dispõe sobre o exercício na telemedicina no Brasil, a Lei n. 13.846/19 é mais específica e, por consequência, prevalecente. Mesmo considerando a Lei mais recente, a 13.989/20 não aborda as perícias médicas especificamente.
Além do impedimento legal, a prática de realização de telemedicina sem médico na outra ponta e para fins de avaliação de capacidade, incapacidade, dano, nexo, diagnóstico e tratamento é igualmente VEDADA pelo Conselho Federal de Medicina.
O artigo 92 do Código de Ética Médica proíbe expressamente qualquer médico de “assinar laudos periciais, auditoriais ou de verificação médico-legal caso não tenha realizado pessoalmente o exame”.
O artigo 80 do Código de Ética Médica proíbe assinar documentos médicos sem ato que o tenha justificado, no caso, relatar exame físico “direto” sem ter realizado diretamente o exame no segurado (Art. 80. Expedir documento médico sem ter praticado ato profissional que o justifique, que seja tendencioso ou que não corresponda à verdade).
O artigo 30 do Código de Ética Médica proíbe o descumprimento de leis: “Art. 30. Usar da profissão para corromper costumes, cometer ou favorecer crime.”
Ao analisar precisamente a possibilidade de realização de perícias virtuais (teleperícias) como medida excepcional e extraordinária enquanto perdurar a pandemia do novo coronavírus, o CFM exarou o Parecer n. 3/2020, no qual detalhou os fundamentos que impedem a adoção dessa prática, nos seguintes termos:
A perícia médica é uma ciência porque sistematiza técnicas e métodos para um objetivo determinado, que é próprio apenas dela e para atingir um objetivo que diz respeito apenas a ela e é uma arte, porque mesmo aplicando técnicas e métodos muito exatos e sofisticados em busca de uma verdade objetiva, utiliza valores que em outras áreas do conhecimento médico não teriam a mesma interpretação. (…)
Ao ser designado jurisperito para avaliar incapacidade laborativa, sequela, déficit funcional, mesmo portando vários documentos médicos, o periciado precisa ser submetido a avaliação médico-pericial. Várias perícias comprovam que o motivo que originou a incapacidade e/ou a invalidez, não subsistem mais. A Valoração do Dano Corporal que se presta a definir em termos técnicos e num quadro jurídico determinado, as lesões e os elementos do dano susceptíveis de serem objeto de sanção penal e/ou indenização, benefícios fiscais, benefícios sociais, etc. demanda a realização do exame médico-pericial no periciado, sendo impossível avaliar déficit funcional, sequela, incapacidades ou restrições sem o exame físico direto.
A pré-existência do dano relativamente ao traumatismo, a natureza adequada do traumatismo para produzir as lesões evidenciadas, a avaliação da natureza adequada das lesões a uma etiologia traumática, a adequação entre a sede do traumatismo e a sede da lesão, a análise do encadeamento anátomo-clínico, análise da adequação temporal, a aplicação da semiologia na identificação de diagnóstico diferencial, a aplicação de testes contra simulação, são métodos e técnicas da ciência médica forense cuja obrigatoriedade do ato médico presencial é inarredável e irrenunciável. (…)
Mesmo na perícia psiquiátrica, há a necessidade de realizar o exame físico, pois além de outros fatores envolvidos na análise da sintomatologia alegada, há questões hormonais/orgânicas, verificadas durante avaliação clínica, como por exemplo a palpação da tireoide e a ausculta cardíaca entre outras. (…)
A perícia médica sem a realização do exame físico direto na periciada afronta o Art. 92 do CEM que veda o médico assinar laudos periciais, auditoriais ou de verificação médico-legal caso não tenha realizado pessoalmente o exame. (…)
Se o objeto da perícia envolve determinação do nexo causal; avaliação da capacidade laborativa/aptidão e avaliação de sequela/valoração do dano corporal, está caracterizada a perícia médica. O nexo causal é a relação indissociável entre causa e efeito, entre conduta e resultado retratado na equação: evento + dano = nexo causal. O dano exige a determinação do diagnóstico nosológico, que está relacionado ao diagnóstico etiológico e ao diagnóstico diferencial. A avaliação de capacidade laborativa, de aptidão ou inaptidão para o trabalho, nada mais é do que atestação de saúde e a avaliação de sequela e da valoração do dano dizem respeito ao prognóstico referente ao diagnóstico nosológico, ou seja, a sequela.
Desta forma, está comprovado o ato médico pericial, consoante a Lei 12842/13, como atividade privativa de médico. A realização de perícia, nesses termos, realizada por outras profissões caracteriza afronta a Constituição Federal/88 e a Lei 12.842/13, com risco real de causar prejuízo ao Estado, à sociedade e às instituições privadas.
Diante do exposto, não é possível a realização da perícia médica virtual como proposto na Nota Técnica NI CLISP 12, a ser realizada pelo médico perito, mesmo em face do estado de Emergência da Saúde Pública de Interesse Internacional em decorrência da Pandemia do COVID-19.
A realização de perícias médicas sem o exame direto do segurado para fins de obtenção de conclusão de incapacidade, capacidade, dano, nexo, diagnóstico ou tratamento também foi abordado em outro Parecer do CFM (n. 10/2020), a respeito do uso desse instrumento nas perícias médicas judiciais:
EMENTA: Em ações judiciais em que sejam objetos de apreciação pericial, a avaliação de capacidade, dano físico ou mental, nexo causal, definição de diagnóstico ou prognóstico, é vedado ao médico a realização da perícia sem exame direto do periciando ou sua substituição por prova técnica simplificada.
O entendimento do CFM a respeito desse assunto é claro e foi consignado nesse mesmo parecer. O Art. 32 da Lei n. 13.989/2020, que dispõe sobre o uso da telemedicina durante a crise causada pelo coronavírus, assim define: “Entende-se por telemedicina, entre outros, o exercício da Medicina mediado por tecnologias para fins de assistência, pesquisa, prevenção de doenças e lesões e promoção de saúde”. Não autoriza o seu uso para fins de perícia médica.
A Resolução CFM n. 1.643/2002, que define e disciplina a Telemedicina, também desautoriza o seu uso para fins de perícia médica. O Ofício CFM n. 1756/2020 COJUR/CFM alerta que a liberação da telemedicina neste momento é EXCEPCIONAL enquanto durar o estado de emergência no combate ao COVID-19 e está restrita às modalidades teleorientação, telemonitoramento e teleinterconsulta. Não há menção a qualquer modalidade de teleperícia.
A Subsecretaria da Perícia Médica Federal e o INSS também infringiram norma do Supremo Tribunal Federal, consignada nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) n. 6.421, n. 6.422, n. 6.424, n. 6.425, n. 6.427, n. 6.428 e n. 6.431, que proferiu a seguinte decisão:
O Tribunal, por maioria, analisou a medida cautelar, vencido, preliminarmente, o Ministro Marco Aurélio, que entendia pela inadequação da ação direta. Na sequência, por maioria, deferiu parcialmente a cautelar para: a) conferir interpretação conforme à Constituição ao art. 2º da MP 966/2020, no sentido de estabelecer que, na caracterização de erro grosseiro, deve-se levar em consideração a observância, pelas autoridades: (i) de standards, normas e critérios científicos e técnicos, tal como estabelecidos por organizações e entidades internacional e nacionalmente conhecidas; bem como (ii) dos princípios constitucionais da precaução e da prevenção; e b) conferir, ainda, interpretação conforme à Constituição ao art. 1º da MP 966/2020, para explicitar que, para os fins de tal dispositivo, a autoridade à qual compete a decisão deve exigir que a opinião técnica trate expressamente: (i) das normas e critérios científicos e técnicos aplicáveis à matéria, tal como estabelecidos por organizações e entidades reconhecidas nacional e internacionalmente; (ii) da observância dos princípios constitucionais da precaução e da prevenção. Foram firmadas as seguintes teses: “1. Configura erro grosseiro o ato administrativo que ensejar violação ao direito à vida, à saúde, ao meio ambiente equilibrado ou impactos adversos à economia, por inobservância: (i) de normas e critérios científicos e técnicos; ou (ii) dos princípios constitucionais da precaução e da prevenção. 2. A autoridade a quem compete decidir deve exigir que as opiniões técnicas em que baseará sua decisão tratem expressamente: (i) das normas e critérios científicos e técnicos aplicáveis à matéria, tal como estabelecidos por organizações e entidades internacional e nacionalmente reconhecidas; e (ii) da observância dos princípios constitucionais da precaução e da prevenção, sob pena de se tornarem corresponsáveis por eventuais violações a direitos”. (…)
(STF, Plenário, ADI n. 6.421/DF, Julgamento da Medida Cautelar, Relator Ministro ROBERTO BARROSO, Data do julgamento: 21/05/2020, grifos aditados)
Do transcrito, nota-se que constitui erro grosseiro o ato praticado em desconformidade com “normas e critérios científicos e técnicos aplicáveis à matéria, tal como estabelecidos por organizações e entidades nacionalmente reconhecidas”.
O CFM ocupa o nível mais alto na hierarquia das organizações e entidades nacionais de Medicina, de modo que lhe compete, por força de lei, a definição das normas e critérios científicos e técnicos aplicados ao exercício da profissão no país.
À luz do entendimento firmado pelo STF no julgamento da medida cautelar formulada na ADI n. 6.421/DF, o Acórdão TCU n. 2.597/2020 e o Projeto de PMUT elaborado pelo INSS na forma do Ofício Conjunto 40/ME/2020, que determina a elaboração de protocolo para a realização de teleperícias em contrariedade à legislação pátria e às orientações do CFM, configura nítido erro grosseiro, ou seja, os gestores responsáveis por sua elaboração estão sujeitos às penalidades da lei pública, inclusive PAD por improbidade administrativa e perda do cargo público.
- Da impossibilidade técnica e das ilicitudes penais do Projeto PMUT
Além de todas as violações legais já descritas, o projeto PMUT não é capaz de impedir outras violações aos direitos dos segurados, dos servidores e, portanto, incorre em vicio insanável em sua origem, devendo ser revogado.
Preliminarmente, cabe pontuar que o ofício editado pela Administração pratica flagrante ilícito quando determina que a empresa, quando do agendamento da perícia, insira todos os documentos médicos do seu empregado. Nesse caso, verifica-se claro assédio contra o segurado, pois há a quebra do seu sigilo médico quando o obriga a entregar todos os seus documentos médicos a algum representante da empresa, que, inclusive, pode ser profissional não médico.
Ademais, não há nenhuma garantia de alguma de que o representante da empresa ficará isolado do segurado durante a transmissão online entre o Perito Médico Federal e o mesmo. A empresa poderá exercer múltiplas formas de coação, observação ou demais violações a essa regra pois é IMPOSSÍVEL haver garantias legais, exceto através do exame físico presencial dentro da repartição pública, de que a empresa não terá acesso ao que será tratado entre as partes.
O projeto atribui, de forma irregular, a responsabilidade da gestão de crises para o servidor executor, da ponta, que não tem função comissionada, cargo ou poder de executar ou demandar nenhuma ação e que, por esse motivo, não pode ser responsabilizado por isso.
O Perito Médico Federal será responsável por impedir a entrada de terceiros, por reagendar, por encontrar outro servidor que faça o exame em seu impedimento, situações que são próprias da gestão.
O projeto obriga o Perito Médico Federal a cometer crime de falsidade ideológica quando o força a preencher o campo “exame físico” com dados falsos de um exame direto inexistente. Por oportuno, vale transcrever o dispositivo do Código Penal que trata sobre a questão:
Art. 299 – Omitir, em documento público ou particular, declaração que dele devia constar, ou nele inserir ou fazer inserir declaração falsa ou diversa da que devia ser escrita, com o fim de prejudicar direito, criar obrigação ou alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante:
Pena – reclusão, de um a cinco anos, e multa, se o documento é público, e reclusão de um a três anos, e multa, de quinhentos mil réis a cinco contos de réis, se o documento é particular. (Vide Lei nº 7.209, de 1984)
Parágrafo único – Se o agente é funcionário público, e comete o crime prevalecendo-se do cargo, ou se a falsificação ou alteração é de assentamento de registro civil, aumenta-se a pena de sexta parte. Falso reconhecimento de firma ou letra.
Por fim, o Projeto PMUT lesa o princípio do trabalho remoto, ao estabelecer horário fixo de atendimento para servidores que não estão submetidos a regime de carga horária, nem de dedicação exclusiva, nem de comparecimento presencial, em clara violação à Portaria SPREV n. 24, de 24 de junho de 2019, e à própria IN n. 65/2020 do ME sobre trabalho remoto.
- Conclusão e Conduta
Pela flagrante violação à leis federais, ao Código de Ética Médica, às normas do Conselho Federal de Medicina e até mesmo ao Código Penal, a ANMP orienta e recomenda que nenhum Perito Médico Federal participe ou aceite realizar atendimento da modalidade PMUT, pois incorrerá em diversas violações legais e éticas que poderão ocasionar a instauração de processos administrativos disciplinares, processos éticos disciplinares e processos criminais contra si.
Orientamos que todos os Peritos Médicos Federais encaminhem para sua Chefia de Divisão, através de processo SEI! e através do e-mail [email protected], a seguinte manifestação:
Eu, (identificação do PMF com SIAPE e lotação), diante da ciência do teor do Ofício Conjunto SEI n. 40/2020, de 29 de outubro de 2020, e de seu respectivo anexo, declaro-me impedido de participar do projeto PMUT e de realizar qualquer tipo de perícia médica sob a forma de telemedicina, por existir violação expressa ao art. 30, § 12, da Lei n. 11.907/09, dos arts. 30, 80 e 92 do Código de Ética Médica, de normas e pareceres do Conselho Federal de Medicina sobre telemedicina, e por configurar falsidade ideológica preencher campos do SABI simulando uma perícia presencial sem realizá-la de fato. Informo, ainda, que, caso essa tarefa seja por mim designada no PMF Tarefas, respeitosamente a deixarei em exigência e solicitarei a Vossa Senhoria que a exclua de minha lista de atribuições.